17.5.15

você teria sido minha salvação

dear,

eu pensei que você pudesse ser a baba de deus descendo dos céus, mansa e arrebatadora, delicada e saborosa como um maná. fiquei tendo pressentimentos de um porvir duradouro, só para depois vê-los, constrangidos, voltando pela mesma rua por onde se foram. desde há uma semana, estou dando murros em ponta de faca, detestando as coisas doces que me disse e me fez sonhar deste outro lado. é certo: a ingenuidade fez a cama onde eu durmo.

por que eu te fiz de repositório, eu não sei, não entendo. não compreendo a mim, que dirá a displicente falta de devoção, as desculpas pela rispidez sofisticada, a injustificada maldade em substituição à palavra boa, o desaparecimento previsível de ti. eu não te entendo. eu não entendo. era para ser uma salvação.

você me salvaria do tédio de continuar vivendo. da preguiça de me levantar para outro dia de trabalho, sem sal, insosso. da insônia viscosa que cola minha cabeça nos travesseiros durante a noite. da minha falta de domínio da casa, sempre em estado provisório e em reforma. da incapacidade que tenho para administrar minhas contas, meu salário, meu tempo de ócio ou ocupação. da minha impaciência com a televisão, os jornais, os programas de auditório e o trivial império das redes sociais. do meu esquecimento persistente do inglês, da minha inaptidão para o francês, do modo improvisado que falo espanhol. da raiva mental que tenho das vizinhas e sua confraria das queixas mesquinhas. da minha velocidade em comprar novos livros, infinitamente superior à possibilidade de lê-los. do hábito de baixar quinhentos filmes e só assistir a um terço (e esquecer porque mesmo quis ver alguns títulos). você me salvaria da minha docilidade, da minha incompetência para dizer não. você me salvaria porque eu já não sei mais me salvar.

então, eu criei você.

e justamente porque fui eu quem inventou tudo isso, vejo a hipótese do amor regredindo, a ansiedade me subtraindo, o desejo me traindo na síntese. eu me vejo agora, com raiva, tendo que lidar só comigo, comigo como deveria ser desde o princípio.

não é a dor do amor o que estou sentindo nesta tarde. é o terror de não poder delegar a outra carne a tarefa de me solucionar. de ter, de fato, que olhar para mim e me questionar: o que salvaria a ti de ti mesmo, baby?

.: marcio markendorf


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