3.7.15

o coração é uma andorinha

my dear,

não tive culpa de você ter existido, estado aqui e me alimentado de grãos e unguento. eu apenas fui responsável por ser pássaro de praça, apegando-me à brevidade do gesto, às sementes de bem querer que pareciam cuidado & aproximação. se houve engano, foi das duas partes  da imprudente displicência de suas mãos, da minha fome imprudente.

mas certo é que meu imaginário voou mais longe, saltou grato por uma calçada de farelos em dia de calor. suas mãos, de outra sorte, voltaram para o bolso e só, sem demonstrar mais amor.

em meu sonho de pessoa humana, vi você cruzar a porta de casa, de madrugada, ficar muito pouco e retornar ao caos de fora da cabana. em seguida, meu montículo de abrigo ficou às voltas com fantasmas brancos, vestidos de lençol e olhos irregulares, como recortados por tesouras. o que levitava por trás dos lençóis era o desejo envergonhado, sofrendo de alguma culpa e me habitando os batentes. (agora mesmo penso ter visto uma capa, uns caninos, um cheiro de morte quando vi suas costas deixando a porta de entrada).

quando acordei, de alma lavada em lavanda e com cor azul perfumada, eu queria beber do abismo, o infinito; cair como pássaro ferido, sem ninho, sem força de vento em asa e assobio. agora: não sou, não sou, não sou. o sonho me purificou ou me mandou recados trágicos?

com os músculos cadentes, instáveis, o coração não foi amansado de ansiedade. passei horas na janela à espera do seu retorno do caos. como não veio, eu me vi como estorvo, um corvo esmagado na parede, de passagem, laminado. eu quis você, eu bem quis. como o corpo de um bem-te-vi cantando triste no arrebol atrás dos galhos.

porque esperei por dias você voltar, se insinuar, me querer por perto, fui virando o canto triste de pássaro urutau, com disfarce de pedra e casca de árvore, à noite. a espessura do seu antigo nome emagreceu, passou por baixo da porta, um vão fino, um papel sem mel. murcharam os afetos, inflou o pathos  um lago inteiro de pathos insensíveis grasnando durante a noite límpida dos meus sonhos. a percussão do pathos com você tocando, invisível, uns pratos de bateria. enlameado de melancolia, joão-de-barro, fechei-me por dentro da própria moradia, e, no escuro do emparedamento, sem dar um pio, soube que a pior intempérie não era a chuva ou o vento, mas o pressentimento do óbvio e do tolo. a asfixia de casa fechada, de saber improvável o retorno, de amargar o entorno do ouvido com as canções que escolhi para seu rádio. amador.

como eu pude ignorar os sinais da terra? a pele podre, os ossos, a cabeça mutilada  um pinguim pequeno morto na praia era um presságio, um mau agouro. não haveria nunca como você amar um corpo contra a luz, de frente para uma lua gorda saindo do mar. e as fotografias do invisível: umas paisagens destruídas, resistentes a existir como desenho, como recordação de cor & salteado. você quis me esquecer nas imagens  e pulverizou a lembrança, sem dó ou piedade. só vi o rastro prateado da lesma, a ausência da lesma, o fantasma do seu corpo. como um pássaro quieto e o signo inquietante do que é passado, do que é morto, roto.

você me deixou, sim, com a experiência do ar, do vácuo. você me deixou sim. e eu fiquei juntando os cacos do subjuntivo ao rés do chão, olhando para suas mãos dentro do bolso, olhando para suas costas de colosso, rochedo, pedra  nunca mais crendo, nunca mais querendo. as mãos, o farelo, o alpiste. o canto de devoração.

resta-me dizer, de longe, inclusive de mim:
o coração é uma andorinha, sozinha, voando alto em direção a um sol de fogo.

.: marcio markendorf





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