28.11.17

argonauta

my love,

ele deixou para trás, há muitos anos, uma cidade antiga. quase nem se lembrava mais do cheiro da terra, da aspereza das muralhas, da vitória das árvores retorcidas em ponta de abismo. o corpo era cerrado; a alma, mansa. ao longo do caminho foi deixando as armas, os brasões, a memória das entradas. atravessar a fronteira, às cavalgadas, foi como um batismo de sangue santo. na aldeia em que ele interrompeu viagem desordeira, os pés fizeram raízes, os galhos subiram a estrada. mas ainda não sabia ele que o tronco só dá sustento se lhe desenham no corpo uma sede, uma sombra, uma copa. muito de sol havia, mas não o consolo dos galhos braços de uma árvore vizinha. a alma, que era mansa, esteve por muito tempo inquieta: vagou pelas encostas, esqueceu-se pelas pedras, engoliu muita água de mar. encontraria ela um navio a lhe saudar da baía o tempo bom e a chegada da pescaria? era o que queria, mais que a fome, mais que o nome do homem que do alto a vigia.

foi quando viu, saindo da névoa em que se encontrava, um navio de cento e quarenta velas. o casco era arisco dos areais e, à distância, a embarcação lançou âncora e sinal de paz. uma só pessoa, uma só, desceu em um bote frágil e sem bagagem. a alma se fez de luz-guia e ainda pediu a deus a calmaria para a pequena passagem. frente a frente, a alma e o marinheiro eram como dois amantes, salvos de um naufrágio, perdidos em uma ilha. saudaram-se em um arrebol triste e, por isso, cheios da carne do por do sol, sentiram saudades da comunhão que sequer havia começado. a alma levou o viajante para perto da morada de árvore e, sem que uma palavra tivesse sido mencionada, o estrangeiro tatuou no tronco o símbolo do amor. e, para sempre, fez daquela sombra doce a sua casa; como da casca, fez a árvore o alimento para um peregrino argonauta, quem tanto o procurou.

assim seria nossa mitobiografia, amor, cuja história já não me basta, cuja história é apenas história, não a casca, a casa, o casco de uma samotrácia vitória. antes fosse um jonas no ventre da baleia, gestando o amor de dois homens irrepetíveis na paisagem. mas a ilha que nos afunda, sinto dizer, engole a civilização única que somos, faz dos nossos imperiais corpos, uma fagulha pequena, um estranhamento. faz também o retorno da víbora, a expulsão do pensamento, perdidos em dois que não se param de caçar e, apesar disto, nunca se encontram nos terrenos cercados do céu, da terra e do mar.



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